terça-feira, 25 de agosto de 2009

Pau, pedra e lama

A noção de felicidade que nos norteia é o mais descarado atalho à frustração e ao estresse. Confundimos felicidade com emoções intensas. Tiramos não sei de onde a idéia de que, para ser feliz, é preciso curtir a vida ao máximo. E, loucura, entendemos que para isso precisamos de muito dinheiro, de viagens, de conforto, luxo, festas, sexo instenso e constante, loucas aventuras. Vivemos com a ilusão de que a vida só vale mesmo a pena quando inundada dessa felicidade. E corremos feito bobos atrás dela.

A noção de felicidade defendida nas palavras e exemplos daquele que veio a ser conhecido como Filho de Deus (mas que gostava mesmo é de ser chamado Filho do Homem) é estranhamente inversa à esse conceito popular.

Para ele, feliz é quem sabe que é espiritualmente pobre, quem chora, quem é humilde, quem tem misericórdia dos outros e um coração puro, quem trabalha pela paz e que, por conta de tudo isso, sofre perseguições. Esse é quem vai desfrutar daquilo que chamamos Reino do Céu - seja lá o que isso for. É para esse que ele promete vida e vida plena, vida de verdade.

A felicidade, portanto, está na forma como encaramos a vida tal como ela é, no exato instante em que ela acontece. Ela não estará jamais na projeção de um futuro melhor, nas expectativas de promoções, de viajens, de aposentadoria, ou seja lá do que for. Nem em um ponto nostálgico do passado.

Felicidade, como cantou o poeta, é um caco de vidro, é a vida, é o sol, é a noite, é a morte, é um laço, é o anzol, é o tombo da ribanceira, o mistério profundo, o projeto da casa, é o corpo na cama, o carro enguiçado... é a lama, é a lama!

Essa é 'a promessa de vida no teu coração'.


Eu vim para que tenham vida, e a tenham plenamente.
João 10.10

Inspirado em dica do Rafael Porto, do Alforria.




Águas de Março
Tom Jobim

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol

É peroba do campo, é o nó da madeira
Caingá, candeia, é o MatitaPereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira

É o vento ventando, é o fim da ladeira

É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira

É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira
É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão

É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto o desgosto, é um pouco sozinho
É um estrepe, é um prego, é uma ponta, é um ponto
É um pingo pingando, é uma conta, é um conto

É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manhã, é o tijolo chegando
É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada

É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato, na luz da manhã

São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no pé

São as águas de março fechando o verão,
É a promessa de vida no teu coração

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um belo horizonte, é uma febre terçã

São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
pau, pedra, fim, caminho
resto, toco, pouco, sozinho
caco, vidro, vida, sol, noite, morte, laço, anzol

São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração.

1 comentários:

Rafael Porto disse...

Pegando o gancho na teoria de que felicidade está nas pequenas coisas, garanto que este texto me fez feliz.

Parabéns - e obrigado!
:)

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