sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Evangelho e cultura

Uma grande dificuldade que o cristianismo tem é se relacionar com a cultura que o cerca de forma pacífica. Reside em nossos corações o medo de perder a fé e ser atacado pelo inimigo que sorrateiramente nos espreita atrás de cada manifestação cultural. Esse mesmo medo se estende para a tecnologia e o conhecimento. Vivemos cercados de medos porque cremos em um inimigo tão forte e inteligente quanto aquele que habita em nós.

Interessante perceber que essa questão era corrente também nos tempos da igreja primitiva. Cultura e religiosidade eram coisas indivisíveis. E, a julgar pelas cartas de Paulo, a comunidade cristã em algumas cidades também sofria desse medo cultural.

Naquele contexto, semelhante ao nosso, Paulo escreve aos romanos (Rm14), ao tratar da necessidade ou não de se abster dos alimentos oferecidos aos ídolos: cada um deve estar convicto em sua própria mente. O argumento dele parece ainda mais ousado quando diz que feliz é o homem que não se condena naquilo que aprova concluindo ainda que aquele que tem dúvida, é condenado se comer (de onde se conclui que a condenação não reside no ato de comer, mas na consciência de quem come). E aos corintios (1Co 8), Paulo diz que, em relação aos alimentos sacrificados aos ídolos, sabemos que o ídolo não significa nada no mundo e que só existe um Deus. Mas, argumenta Paulo, alguns ainda comem alimentos sacrificados como se o ídolo fosse alguma coisa de poder semelhante à Deus e pudesse, de alguma forma, se opor à Ele e como a consciência deles é fraca, fica contaminada. E como o assunto é polêmico e recorrente, Paulo ainda insiste (1Co10.23): comam tudo que tem no mercado sem fazer perguntas por causa da consciência. E mais algumas vezes ele insiste que o problema não está no demônio que a cultura insere no alimento, mas na consciência de quem se alimenta, e pergunta: porque minha liberdade deve ser julgada pela consciência do outro? Ou seja: se estou tranqüilo, de cuca fresca, me deixem comer em paz!

Mas nós temos muita dificuldade de agir com liberdade nessas questões. Nosso medo continua - mas se eu for lá na aula de yoga e isso for mesmo coisa do diabo? - Parece que ele vai desapercebidamente, grudar na minha "canguta", como naquele famoso romance cristão. E vivemos à sombra do medo. E só nos sentimos seguros entre os muros gelados da nossa instituição religiosa. Lá somos intocáveis. Lá temos o corpo fechado.

Engraçado é que fomos chamados para ir ao mundo, mas poucos têm essa coragem. Se nos falta coragem, se somos fracos, como diz Paulo, é porque nos falta a essência daquilo que Jesus pede de nós – amor. Porque o amor lança fora o medo. E se foi para liberdade que Cristo nos libertou, que liberdade é essa que nos faz temer o ataque do inimigo em cada canto da cultura que nos cerca?

Paulo prossegue na luta de libertar o cristão desse medo. Aos colocensses (Cl2), ele pede que não permitam que ninguém os julgue pelo que vocês comem, ou bebem, ou com relação a alguma festividade religiosa ou à celebração das luas novas ou dos dias de sábado. Todas essas coisas envolviam, naquele tempo, uma miscelânea indivisível de religiosidade e cultura, mas Paulo pergunta sarcasticamente: porque vocês se submetem a regras: não manuseie! não prove!, não toque!? E ainda termina provocando: essas regras têm, de fato, aparência de sabedoria, com sua pretensa religiosidade, falsa humildade e severidade com o corpo, mas não têm valor algum para refrear os impulsos da carne. Ele parece insistir que o problema está em outro lugar, muito mais próximo de nós do que a cultura. Está dentro, escondido num canto escuro do nosso coração evangélico e bem comportado.

Nós insistimos em que o viver santo carece de abstermo-nos do mal e, por isso, arranjamos algumas formas de conduta que possam ser julgadas como más, para podermos nos abster delas e termos aquela bela sensação de santidade. No entanto (Cl3), povo de Deus, santo e amado, se queremos um viver santo, revistam-se de profunda compaixão, bondade, humildade, mansidão e paciência. Suportem-se uns aos outros e perdoem as queixas que tiverem uns contra os outros. Acima de tudo, porém, revistam-se do amor, que é o elo perfeito.

Portanto, no que diz respeito à cultura que nos cerca, deixemos de nos preocupar com os demônios que habitam escondidos pelos cantos. Porque toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto. E a música popular, o folclore, os atabaques e danças, bem como toda forma de cultura, está repleta de boas dádivas, que geram saúde, sabedoria, capacidade de concentração e relaxamento. Desfrutemos dessas boas dádivas com nossas consciências tranqüilas. Porque o poder de atuação do mal sobre nós reside em nossas dúvidas, temores e medos.

E, você pode estar perguntando, quando ouvimos aquele testemunho do rapaz que fez acupuntura e se viu bloqueado em relação ao seu relacionamento com Deus? Ora, nesses casos o crente se sente, no canto do seu quarto, sozinho diante de Deus, como a criança que foi pega por ter roubado doces. A consciência do sujeito já o havia condenado muito antes da primeira agulhada e, como a consciência dele era fraca, ficou contamidada.

Sim, Paulo nos exorta a cuidarmos dos fracos. Mas esse cuidado inclui, certamente, o ensino e encorajamento para fortalecê-los. E não o amparo de uma mãe superprotetora que carrega galos crescidos debaixo das asas. Por isso, como Paulo (Ef3), devemos orar à Deus para que ele os fortaleça no íntimo do seu ser com poder, por meio do seu Espírito.


Adaptado do texto publicado originalmente no blog A TRILHA em 2.5.07

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